Uma revolução sem gramática
Entrevista
David Crystal, autor de A Revolução da Linguagem, fala sobre as mudanças que a internet trouxe ao uso da língua.
Jerônimo Teixeira - Revista Veja*
Professor honorário de linguística da Universidade do País de Gales, em Bangor, David Crystal, de 66 anos, é uma das maiores autoridades mundiais em linguagem. Autor de A Revolução da Linguagem (Jorge Zahar), ele falou a VEJA sobre as mudanças que a internet trouxe ao uso da língua e sobre as línguas em extinção.
A internet está mudando o caráter das línguas?
David Crystal: Em cinquenta ou 100 anos, todas as línguas que utilizam a internet serão diferentes. Está surgindo o que chamo de netspeak, "fala da rede", ou comunicação mediada pelo computador, em jargão acadêmico. Ainda é impossível prever, no entanto, quais serão a forma e a extensão dessa mudança. Leva muito tempo para que uma transformação efetiva se manifeste numa língua. No inglês, por exemplo, notamos uma grande diferença entre a linguagem de Chaucer e a de Shakespeare. Duzentos anos separam o nascimento de um e de outro. Pergunte às pessoas quando foi a primeira vez em que elas mandaram um e-mail. Foi há dez, talvez cinco anos. É algo recente demais. Existem curiosos fenômenos de ortografia, o uso de sinais tipográficos e dos chamados emoticons. Mas, se procurarmos por novas palavras ou uma nova gramática na internet, não encontraremos muita coisa. O inglês é uma língua com mais de 1 milhão de palavras, e somente umas poucas centenas foram incorporadas a ela por causa da internet. Isso não altera o seu caráter.
A informalidade é uma característica central do netspeak?
David Crystal: Sim, até o momento. Isso tudo começou com os nerds da internet, há vinte, trinta anos. E eles eram rebeldes. Viam a rede como uma revolução, uma alternativa democrática às formas de comunicação mais formais. Esses pioneiros não pontuavam, não se preocupavam com ortografia, criavam formas estranhas de grafar as palavras. Quando a internet se espalhou, a informalidade se popularizou também. Nos anos 80 e 90, e-mails se tornaram muito informais. Mas a idade média do usuário de internet vem subindo, e com isso a comunicação está ficando mais formal novamente. Acredito que os estudos sobre netspeak que virão daqui por diante vão documentar um aumento da formalidade.
O senhor afirma que, no atual ritmo de extinção, em um século teremos so metade das línguas que são faladas no planeta hoje. Por que tantas línguas estão desaparecendo?
David Crystal: O principal motivo é a assimilação cultural por causa da globalização. O crescimento das grandes línguas do mundo funciona como um trator, esmagando os idiomas que se põem no caminho. Isso não é um fenômeno restrito a duas ou três línguas. Não é apenas o inglês que ameaça línguas nativas na Austrália, ou o português que põe em perigo idiomas indígenas no norte do Brasil. O chinês, o russo, o hindi, o suahili - todas as línguas majoritárias ameaçam idiomas de comunidades pequenas. O futuro dessas línguas minoritárias está vinculado a políticas regionais. Nos lugares onde elas sobrevivem, há uma série de práticas políticas e econômicas que valorizam a diversidade.
O que se perde quando uma língua morre?
David Crystal: Quando me fazem essa pergunta, costumo rebater com outra: como seria o mundo se a sua língua não houvesse existido? O que você teria perdido, o que todos teríamos perdido se não existisse o português? Se não houvesse o inglês, não teríamos Chaucer, Shakespeare, Dickens. Quando colocamos as coisas nesses termos, as pessoas vêem. Uma língua expressa uma visão peculiar do mundo. Não importa se a comunidade que utiliza essa língua vive em uma selva, em um iceberg ou na cidade, sua história, seu ambiente e seu modo de pensar não têm igual. O único meio de comunicarmos a percepção do que é ser humano em determinado ambiente é através da linguagem.
No Brasil, já houve tentativas de restringir legalmente o uso de palavras estrangeiras, especialmente do inglês. O inglês pode ser considerado em alguma medida uma ameaça ao português?
David Crystal: Não, de forma alguma. Esses movimentos puristas aparecem no mundo todo. E o fato básico é que todas as línguas tomam empréstimos das outras. Ao longo dos últimos 1.000 anos, o inglês incorporou palavras de mais de 350 línguas. Só 20% das palavras do inglês atual remontam às origens anglo-saxônicas e germânicas da língua. Essa incorporação de palavras tornou o inglês uma língua expressiva e rica. Shakespeare não poderia escrever o que escreveu se não contasse com um vocabulário que era germânico, francês e latino. Palavras se incorporam a uma língua não para destruí-la, mas para permitir novas oportunidades de expressão. Se cada palavra que entra no português apagasse uma palavra anterior, isso seria de fato um fenômeno estranho e indesejável. Mas não é assim que funciona. A nova palavra não substitui palavras preexistentes, ela passa a vigorar ao lado delas. A língua evolui desse modo e alcança uma gama expressiva mais ampla.
Como lidar com a questão do vocabulário importado ao educar as crianças?
David Crystal: Os jovens gostam de usar palavras estrangeiras, pois em geral elas soam inovadoras. Gostam também de empregar gírias que eles próprios criam. Não se pode proibir jamais crianças e adolescentes de utilizar suas formas particulares de linguagem. É como dizer a eles: "Valorizem a linguagem mas não a sua própria". É muito importante que, nas escolas, os estudantes aprendam toda a gama de possibilidades da língua. Eles precisam descobrir que há palavras tradicionais e palavras novas para as mesmas coisas. E devem saber também a diferença estilística entre essas opções.
Por que o inglês é a língua mais visada pelos puristas?
David Crystal: Pela razão simples de que é a língua mais globalizada. É sobretudo uma questão política, que varia de região para região. Quem fala quíchua, no Peru, não está preocupado com o inglês, mas com vocábulos que remetem à história do domínio espanhol sobre os povos indígenas. A política está sempre por perto nessas questões.