Os preconceitos da pronúncia
Inglês macarrônico do técnico Joel Santana virou motivo de chacota, mas a risada pode esconder muito de intolerância
Edgard Murano - Revista Língua Portuguesa*
Na Copa das Confederações, em junho, a vitória de 1 a 0 do Brasil sobre a África do Sul transformou o técnico carioca Joel Santana num involuntário porta-voz do sotaque desengonçado do brasileiro tipo exportação.
Após o jogo, que valia uma vaga na final vencida pela seleção brasileira dias depois, o técnico dos africanos esforçou-se para falar com os jornalistas em inglês, um dos 11 idiomas oficiais do país sede da Copa de 2010. O simpático esforço de Joel agrada a mídia local, que o critica pela armação do time, nunca pelo domínio do idioma. Mas o resultado, macarrônico, virou motivo de piada no Brasil.
O vídeo com suas declarações foi visto mais de 687 mil vezes no YouTube (http://tinyurl.com/joelsotaque) até o início de julho. "My equipe prei véri naice" (My equip played very nice, minha equipe jogou muito bem), disse o técnico. O sucesso foi tamanho que ganhou edição em funk, com um clipe misturando imagens da torcida com batidas dançantes.
"Oportunidá"
Não é a primeira vez que personalidades do futebol viram alvos públicos ao tropeçar no idioma alheio. Em sua apresentação como técnico do Real Madrid, em 2004, Wanderley Luxemburgo caprichou no portunhol, com direito a palavras como "oportunidá" e "arrepiendo". Outro campeão de acessos no YouTube, o jogador Anderson, do Manchester United, deu entrevista em inglês com a naturalidade dos desavisados, recorrendo ao português sempre que lhe faltava repertório ("more ataque").
Em ambos os casos, a risada pode esconder muito de intolerância. Mesmo quando fluentes em outro idioma, os brasileiros pronunciam palavras estrangeiras sempre à sua maneira, como fazem todos os povos. Como lembra Sírio Possenti, da Unicamp e colunista de Língua, é pouco provável que falemos "e-mail" ou "orkut" com pronúncia de nativo (algo como [í:mel] e [órkãt]). Dizemos [iméil] e [orcútchi]. Segundo o linguista, as palavras estrangeiras se encaixariam num padrão silábico dominante no Brasil: assim, "shopping", "outdoor" e "marketing" viram [xópin], [autidór] e [márketin] por aqui.
Ouvido bom
Os carros da Ford nunca foram chamados "fór", mas "forde". A empresa Singer é dita como se escreve, nunca à inglesa "sínguer". O personagem "Peter Pan" aqui é pronunciado "péter", não "píter", talvez porque a história de J. M. Barrie tenha chegado ao Brasil num tempo em que a opinião pública ainda estava muito influenciada pelo francês, não pelo inglês, como agora.
A interferência do idioma materno na pronúncia de uma língua que não é sua, como foi o caso de Joel Santana, é o que linguistas ingleses chamam de foreign accent (sotaque estrangeiro) e ocorre em mais de um aspecto da pronúncia: no ritmo, na produção dos fonemas e na acentuação.
Fenômeno bem distinto, no entanto, é o da inconsciência do contexto, caso em que se enquadrariam os episódios com Luxemburgo e Anderson. O portunhol, por exemplo, é calcado na aparente semelhança com o português para criar pronúncias e termos que não existem nem lá nem cá. Segundo a professora Lígia Velozo Crispino, da Companhia de Idiomas, muitos brasileiros não se preocupam em se fazer entender e falam outro idioma como se estivessem falando português.
- Eles não desenvolvem o "ouvido bom" para perceber as nuances e diferenças entre os idiomas - explica Lígia.
Para a professora, há várias maneiras de reduzir o próprio sotaque, embora seja quase impossível eliminá-lo. Ela afirma que nossa maior dificuldade com a pronúncia do inglês, por exemplo, se dá pelo fato de o português ser um idioma mais nasal, e recomenda reduzir a quantidade de ar que passa pelo nariz ao pronunciar uma palavra em inglês.
Outra fonte de engano na pronúncia são as letras g e j (de manager e job, por exemplo), que costumam ser pronunciadas como em português, quando o aconselhável seria pronunciar um d antes delas: "manadger" e "djob".
Há ainda as terminações t, d, n, p e k, a que os brasileiros costumam acrescentar a chamada "vogal intrusa" no final: talk ("talki"), good ("gudi"), bad ("bédi").
Reação
A vontade de apagar traços da pronúncia brasileira do inglês virou até mercado, com os chamados cursos de accent reduction (redução de sotaque), comum em escolas de idiomas de todo o país.
- A entonação do inglês é bastante linear. Nós, brasileiros, enfatizamos muito emoções e preferimos transmitir algumas mensagens por meio da entonação que damos a frases ou palavras soltas, algo que não ocorre no inglês - afirma Lígia.
Segundo a professora, o sotaque "cantado" brasileiro se deve à grande complexidade e variação de tons do português, conferindo à nossa variante um tom característico.
O entendimento de uma língua não necessariamente passa pela pronúncia correta. Num contexto de globalização, dizem os especialistas, a exigência da pronúncia inglesa ou americana do inglês pode estar perdendo espaço, já que se trata de uma língua usada em contextos profissionais de diversos países.
Comunicar-se de forma compreensível internacionalmente estaria se tornando uma exigência de mercado maior que a busca pela pronúncia perfeita. Tripudiar sobre gente como Joel Santana, assim, pode até ser divertido, mas é mais um sinal de preconceito do que de efetiva inteligência linguística de quem o critica. (Colaborou Luiz Costa Pereira Junior)
*Reportagem retirada da Revista Lìngua Portuguesa, Edição on-line, Agosto de 2009.(http://revistalingua.uol.com.br/textos.asp?codigo=11809)