Alma de Escritor
Tradutores precisam ser artistas das palavras para verter livros de uma língua para outra; este processo, não raro, revitaliza as obras literárias originais
Por Rui Barata Neto - Revista da Cultura*
Cinco anos após sua morte, em 2003, o escritor chileno Roberto Bolaño tornou-se um dos mais famosos autores latino-americanos nos Estados Unidos. A tradução para o inglês de seu último romance, 2666 (originalmente de 2004, mas publicada por lá em novembro de 2008), causou um enorme frisson entre os leitores norte-americanos. O livro foi listado pela The New York Times Review como um dos melhores do ano passado e, ainda em março deste ano, levou o The National Book Critics Circle Awards de melhor ficção. Tais conquistas são raras para um autor de língua hispânica que, ironicamente, ganhou status de best seller em um país conhecido por não privilegiar traduções.
A tal “Bolañomania” – como definiu a The Economist – é o mais recente exemplo de como um escritor pode ser recriado em outro idioma. O peruano Julio Ortega, professor da disciplina Estudos Hispanoamericanos da Universidade Brown (EUA), em crítica publicada no periódico espanhol El País, ressalta o fato de a versão traduzida ter feito de Bolaño um autor diferente para os norte-americanos. “O Bolaño que se lê em inglês não é o mesmo que é lido em espanhol”, garante Ortega. “Seu texto ganha outra vida, outra função”. O crítico peruano argumenta que a tradução ressalta um aspecto mais vitalista de sua narrativa e a insere dentro de um estilo caracteristicamente yanqui, mais próximo de Jack Kerouac, o beat autor de On the Road – Pé na estrada.
A análise ressoa em outra crítica de Michael Saler, do suplemento literário da edição inglesa do jornal The Times, que atribuiu o sucesso de 2666 à expectativa de críticos e leitores do país em torno do trabalho, já que haviam sido positivamente surpreendidos com o livro anterior de Bolaño, The savage detectives (Os detetives selvagens), lançado no início de 2008. Saler também destaca a voz exuberante, informal, do autor, que ecoa à primeira vista vários clássicos norte-americanos. “Embora ele tenha citado Huckleberry Finn [personagem de Mark Twain em As aventuras de Huckleberry Finn] como uma inspiração, o livro traz a marca de On the road e The catcher in the rye (O apanhador no campo de centeio), [de J. D. Salinger]”, diz Saler, para quem são brilhantes as traduções de Natasha Wimmer, responsável por verter as duas obras de Bolaño para o inglês.
O caso de Bolaño é mais um entre tantos outros da literatura cujos holofotes são voltados para o trabalho da tradução. O próprio Ortega lembra de Edgar Alan Poe, que foi considerado um autor menor até ser traduzido por Charles Baudelaire, que, em francês, deu nova dimensão à sua obra. Em outro exemplo, Modesto Carone, um dos principais tradutores de Franz Kafka para o português, lembra que a primeira tradução do escritor checo para o espanhol, feita por Jorge Luis Borges, trouxe muito mais do estilo literário do argentino do que de Kafka. No Brasil, quando se deparou com uma tradução de A peste, de Albert Camus, assinada pelas iniciais G.R., Carone teve a certeza de conhecer o escritor por trás do texto em português e mais tarde recebeu a confirmação de que se tratava do grande Graciliano Ramos. “Era quase uma visão do Camus pelo Graciliano, mas era fantástica”, analisa Carone, também escritor e vencedor do prêmio Jabuti de 1999 com seu romance Resumo de Ana.
Fidelidade
Os exemplos citados, conforme salienta Carone, são excepcionais, fruto do trabalho de verdadeiros “artistas da palavra.” “As grandes traduções geralmente são feitas por escritores com pleno conhecimento de sua língua, pois o resultado da tradução só pode ser conferido no idioma de chegada. É aí que está a prova dos nove”, diz. “Ao contrário, se ele tiver apenas o domínio da língua estrangeira, na hora de verter o texto não encontra ferramentas para transmitir a complexidade do autor original.”
Mas, por estar ligado à obra de outro escritor, comprometido em transportá-la fielmente para sua língua, o tradutor não deve interferir tanto na obra original a ponto de se tornar um coautor em outra língua. “Se me considerasse uma coautora das obras que traduzo, todos os meus trabalhos seriam traduções à moda Lya Luft e não traria o mundo do autor estrangeiro para o leitor de minha língua, que é o verdadeiro objetivo”, explica a tradutora de Thomas Mann e Virginia Woolf e também escritora de romances como A asa esquerda do anjo. “O tradutor precisa desaparecer para que o autor estrangeiro apareça.”
Com ela concorda o escritor e jornalista Ruy Castro, que, embora não seja tradutor por profissão, já verteu para o português obras de escritores como F. Scott Fitzgerald, Dorothy Parker e Woody Allen. Segundo ele, pelo fato de traduzir autores com os quais tem certa identificação, talvez apareçam em suas traduções elementos comuns entre o seu texto e o do estrangeiro. “Mas o que interessa é o autor, e não o tradutor”, diz Castro.
Como defendia o pensador e escritor alemão Goethe, citado por Carone, no geral há três tipos de traduções: a primeira torna a obra traduzida parte da literatura da língua para a qual foi vertida, como parece ter sido o caso de Bolaño; a segunda é a mais comum, na qual o idioma de partida e o de chegada tendem a se encontrar em um momento em comum. “Uma delas sai de si mesma e encontra a outra em um determinado ponto, resultando em algo novo”, explica Carone. E a terceira, considerada a mais utópica por ele, é a tradução que supera o original. “Embora existam traduções perfeitas de Macbeth, feitas por Manuel Bandeira, em que sentimos o drama e toda a poesia da peça, é difícil observarmos algo dessa natureza.” Para Lya Luft, a boa tradução é aquela em que o leitor não percebe que está lendo uma obra traduzida, embora saiba que é.
Subjetividade
Porém, esse processo de transmissão da literariedade do original estrangeiro tem qualquer coisa de inexplicável, de um mistério que se aproxima da própria criação artística. Walter Carlos Costa, professor da pós-graduação em Estudos da Tradução da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC) – hoje considerado um dos grandes centros da área no Brasil – diz que, assim como um autor às vezes perde o controle sobre a sua criação e deixa fluir sua narração ao gosto de seus personagens, o tradutor também pode inconscientemente ser levado por um processo pessoal de tradução. Costa ilustra sua afirmação com um exemplo do poeta concretista e tradutor Haroldo de Campos, que, embora tenha criado o conceito de “transcriação” para demarcar o salto real de um idioma para outro e, com isso, admitido uma recriação do original, adotou um processo mais literal de transmissão para o português do poema O infinito, do italiano Giacomo Leopardi. “Nessa tradução, ele seguiu muito mais o original semanticamente do que ele diz na teoria que defende. Uma coisa é a ideologia do tradutor, e outra é a forma como ele escreve”, explica Costa.
Por conta desse aspecto subjetivo da tradução que pode revitalizar o original estrangeiro, o filósofo, crítico, ensaísta e tradutor alemão Walter Benjamin chega a afirmar no texto A tarefa do tradutor [no livro Angelus Novus] que um texto literário original é apenas a primeira manifestação. A obra, de acordo com ele, só é plenamente desenvolvida após várias traduções.
Como lembra Walter Costa, Jorge Luis Borges, ao se referir às traduções em inglês de Homero – que aliás são muitas –, acreditava ser uma vantagem a ignorância do grego pois, como leitor, tinha acesso a uma verdadeira biblioteca e não somente a um livro original. Isso porque as várias versões traduzidas revelavam novos aspectos contidos na mesma obra. “Se as traduções forem muitas e de tradutores com imaginação, o resultado é mais rico”, diz Costa, citando a experiência de ler Emily Dickinson traduzida “brilhantemente” por Haroldo de Campos.
Intimidade
Ainda segundo Costa, o tradutor precisa lidar com amplos aspectos do mundo do autor original, desde autobiográficos, para tornar as traduções mais ricas. Boris Schnaiderman confirma isso ao falar das traduções do russo para o português que, nos anos 1960, vinham de outras línguas e não da original, causando naturais deformações. Porém, há o caso de Rubem Fonseca. Ele tinha intimidade tão grande com o escritor judeu russo Isaac Babel que fez uma tradução primorosa do autor, contornando problemas da versão feita a partir do inglês. “É um caso excepcional, mas exemplo de que todo tradutor precisa ter muita paixão, muito envolvimento com a obra do autor que traduz”, comenta Schnaiderman, um dos mais experientes tradutores brasileiros e o primeiro a verter Os irmãos Karamázov para o português. Ao lado dos irmãos Haroldo e Augusto de Campos, ele organizou também o livro Poesia russa moderna – Nova antologia, trabalho considerado um dos mais sofisticados em língua portuguesa.
Walter Costa, ainda citando Borges, acredita que a riqueza das traduções é o fato de elas registrarem as leituras do passado e de cada uma revelar o tipo de leitura de determinada época. “Como o texto é um elemento móvel, a tradução revela coisas camufladas no original.”
Teorias como essas provavelmente justificam projetos como o do escritor mexicano Mario Bellatin, revelado no lançamento no Brasil do seu livro Flores, na Livraria Cultura do Conjunto Nacional, em São Paulo. O autor mexicano fechou com a editora Gallimard a produção de um novo romance, que será escrito em espanhol, mas lançado somente na França - em francês, claro. A ideia de Bellatin é se deparar com o próprio texto “transcriado” e então retraduzi-lo para sua língua materna, com um tradutor supervisionado por ele. O livro em francês está previsto para sair em 2011 e as versões em espanhol e em outras línguas devem ser lançadas na sequência.
Bíblia
Outro benefício interessante da tradução é o enriquecimento das línguas. Como lembra Carone, foram as traduções da Bíblia para o alemão, por Lutero, e para o inglês, pelo Rei James, as responsáveis por desenvolver a literatura dos dois idiomas. E mais: a própria literatura grega, ao ser traduzida para o latim, acabou se tornando patrimônio da língua latina, ainda que fossem povos culturalmente muito diferentes. “Um povo era filosófico e o outro, prático. Houve uma negociação, digamos assim, cultural através da tradução e o lucro foi geral”, conta. O “lucro geral” surge no próprio trabalho dos tradutores. Durante o processo, eles se tornam garimpeiros de expressões, palavras, construções de frases que no idioma materno melhor representem aquilo que o autor estrangeiro diz em sua cultura. É nesse momento que, mesmo não sendo autor, o tradutor precisa necessariamente ser “artista da palavra” e, por extensão, escritor.
Esse processo é bem ilustrado por uma experiência pessoal do paraibano Paulo Bezerra, um dos melhores tradutores de Fiódor Dostoiévski para o português, vencedor do prêmio APCA (Associação Paulista de Críticos de Arte) em 2008 pela tradução direta do russo de os Os Irmãos Karamázov. Bezerra se deparou com a impossibilidade de traduzir literalmente a expressão russa “meu olho, meu diamante”, pois a frase “perdia o sentido” em português. Ele passou então a procurar uma expressão mais exata. Encontrou várias e, entre elas, o famoso, mas batido, “ver para crer”. Por fim, adotou uma sentença encontrada no Nordeste, na fala de sua irmã: “Ver de perto para contar de certo”. “O tradutor torna-se um escritor quando é obrigado a usar os recursos da língua de maneira criadora. Trazer para o idioma de chegada o sentido do original, ainda que as formas estejam diferentes. Esse sentido o tradutor traz de uma história pessoal. E demonstra a riqueza da língua portuguesa”, fala Bezerra.
Outro exemplo interessante é o de Leiko Gotoda, uma das pioneiras no Brasil em traduzir do japonês. São dela as versões em português de obras como Musashi, de Eiji Yoshikawa, e Caçando carneiros, de Haruki Murakami. Por se tratar de uma língua escrita com ideogramas – desenhos que representam imagens e ideias inteiras através de símbolos –, obriga uma intensa pesquisa no cotidiano da cultura de origem para levantar aspectos, mesmo que correspondam a apenas uma pequena menção dentro do original. Leiko só não enveredou pela carreira de escritora, no sentido de criação de uma obra própria, pela falta de segurança e dificuldade de criar histórias. “Apesar de não poder ser criativa no sentido de escrever um romance meu, acho que consigo ser criativa no sentido de construir bem um texto.”
Fertilização
A proximidade entre o trabalho o do tradutor e o do escritor é tão grande que não raro pode se notar a evolução estilística de alguns autores à medida que realizam traduções. Carone cita Guimarães Rosa, para quem “a tradução é como uma enchente do Nilo, que fecunda suas duas margens.” Não é à toa que Lya Luft vê como paralelas sua carreira de tradutora e a de escritora – já traduzia desde criança textos em alemão, sem deixar de escrever coisas próprias, levando ambas as atividades concomitantemente ao longo da vida.
Segundo Walter Costa, atualmente há teses acadêmicas que procuram dissecar o desenvolvimento da linguagem de grandes escritores brasileiros a partir das traduções realizadas por eles, “como fica evidente com Manuel Bandeira, Machado de Assis e Clarice Lispector.” “Ao realizar uma tradução, o escritor, com sensibilidade vai renovando o estoque de formas, ganhando novos procedimentos literários, assimilados de forma consciente ou inconsciente.”
“O tradutor de literatura deve ser escritor ou ter uma grande paixão literária. Ele pode não ter livro publicado, mas deve ter alma de escritor, pela sensibilidade que lhe é exigida e para poder se imaginar como escritor”, sentencia Lya Luft. Há qualquer coisa de semelhante em Natasha Wimmer. Por algum motivo, ainda na faculdade, ela decidiu não ser escritora de ficção, mas queria ficar o mais perto possível dos livros. A tradução se tornou o melhor caminho.
Diálogo Cultural Um dos maiores sucessos infanto-juvenis de todos os tempos será analisado do ponto de vista das várias traduções, elaboradas com a finalidade de documentar como um único livro consegue incendiar a imaginação de jovens no mundo todo e sintonizá-los em torno de uma única obra. Tudo isso focado na importância do papel do tradutor. Trata-se da série Harry Potter, da escritora inglesa J. K. Rowling. Entre 7 e 8 de setembro, tradutores do título para diversas culturas se reunirão em Paris, na França, na conferência Globalização Via Localização – Um Diálogo Cultural Através das Traduções de Harry Potter, com o patrocínio da Unesco. Do Brasil – e do português-, a convidada é Lia Wyler, que tem uma experiência bastante particular com os livros do jovem bruxo. Como ela explica, a cultura brasileira já é permeada no cotidiano de referências culturais norte-americanas que, por sua vez, tem padrões derivados da Inglaterra. Assim, em seu caso, sempre foi possível conservar diferenças para destacar que se trata de autor estrangeiro escrevendo para seus conterrâneos. “As crianças inglesas tomam chá e, mesmo acompanhado de bolinhos, continua sendo chá a qualquer hora. Já as crianças brasileiras tomam café com leite e bolinhos, uma refeição chamada de lanche, de merenda. Mesmo assim mantenho chá, que é um dado cultural inglês conhecido”, conta Lia. Alguma diferença, segundo ela, pode acontecer em ditos populares, muitas vezes inventados por Rowling. “Mantenho o conteúdo intacto, mas mudo alguma palavra para manter o ritmo característico dos ditados populares.” Um exemplo está na frase rimada em inglês "jinx by twilight undone by midnight”. Em tradução livre seria “feitiço ao anoitecer desfaz à meia-noite”, mas foi traduzida como “feitiço ao anoitecer desfaz ao amanhecer” para justamente manter o ritmo. A manutenção de dados específicos da cultura inglesa de forma literal não torna, no entanto, o trabalho mais fácil. De acordo com Lia, a grande dificuldade está em trabalhar com um texto no qual a autora dá novos significados a palavras de uso corrente, encenando sua trama em um universo paralelo, que exige um profundo conhecimento da cultura do Reino Unido, seus padrões de comportamento, crenças e costumes de seus distintos grupos sociais e dos vários registros em que eles se expressam. “Além disso, em todos os volumes há dezenas de decalques de notícias de jornal, avisos escolares, livro de feitiçaria medieval, irradiação de jogos, cartas oficiais de adultos para crianças e entre elas mesmas, que contribuem para dar maior verossimilhança à trama”, comenta Lia. |
*Reportagem retirada da Revista da Cultura, Edição 25, de Agosto de 2009 (http://www2.livrariacultura.com.br/culturanews/rc25/index2.asp?page=capa)